quarta-feira, abril 11, 2007

A prova testemunhal

(texto de Maria José Magalhães, para a sessão de 14 de Novembro de 2006)

No Código de Processo Penal são várias as disposições legais que se reportam à figura da testemunha, nomeadamente os artigos: 128º a 139º, 271º, 294º, 315º a 319º, 331º, 348º, 349º, 353º e 356º.
Mas, afinal a que nos referimos quando usamos a expressão testemunha?
Testemunha é a pessoa que no processo afirma, embora não contra si mesma, ter percepcionado um facto, do qual fornece a descrição.[1] Assim, dando-se o caso de alguém se sujeitar a um exame na sua pessoa, porque por ex., sofreu lesões que compete à medicina legal descrever, ou a uma revista (art.º 174º, nº 1), já não estará a intervir como testemunha. Todavia, consideramos testemunha o indivíduo que reproduz o relato de outra pessoa, afirmamos que presta declarações “de ouvir dizer”, é testemunha de auditu, independentemente da forma como a lei admita, ou não, a correspondente valoração do depoimento prestado com essas limitações.
Testemunha é também a que se presta a fazer um reconhecimento.

A quem compete a inquirição da testemunha?
No inquérito, a testemunha é ouvida pelo MP, assistido pelos órgãos de polícia criminal (artigos 263º, nºs 1 e 2, e 267º).
Na instrução, é acto do juiz (artigo 290º, nº 2).
Na audiência de julgamento, a testemunha é inquirida por quem a indicou, sendo depois sujeita a contra-interrogatório, podendo seguir-se a reinquirição e novo contra-interrogatório (artigo 348º, nº 4): é o sistema de audição cruzada; mas os juízes podem, a qualquer momento, formular à testemunha as perguntas que entenderem necessárias para esclarecimento do depoimento prestado e para a boa decisão da causa.

Juramento
Antes de começarem a ser ouvidas, as testemunhas prestam juramento pela seguinte forma: “Juro, por minha honra, dizer toda a verdade e só a verdade” (artigos 91º, nº 1, 132º, nº 1, alínea b), e 138º, nº 3, última parte). Porém, isso só acontece quando o depoimento é prestado perante a autoridade judiciária competente — o depoimento prestado perante OPC não é precedido de juramento (cfr. art.º 270º nº2 al. a)).
A autoridade judiciária adverte previamente quem o deve prestar das sanções em que incorre se o recusar ou a ele faltar (artigo 91º, nº 3). A falta de advertência relativamente às sanções aplicáveis não integra qualquer proibição de prova, pode no entanto repercutir-se na punibilidade da conduta da testemunha infractora, que passa a ser atípica.
Não prestam juramento os menores de 16 anos (artigo 91º, nºs 3 e 6); assim como o arguido (cfr. art.º 140º, nº 3 do CPP), as partes civis e o assistente, visto que não sendo testemunhas, só prestam declarações (cfr. art.ºs 346º e 347º).
As testemunhas são inquiridas separadamente (“uma após outra”, determina o art.º 348º, nº 2), nomeadamente para evitar que se influenciem reciprocamente. O depoimento é um acto pessoal, que não pode ser feito por intermédio de procurador.
Primeiramente, a inquirição incide sobre os elementos necessários à identificação da testemunha, sobre as suas relações de parentesco e de interesse com o arguido e outros intervenientes, bem como sobre quaisquer circunstâncias relevantes para avaliação da credibilidade do depoimento (artigo 138º, nºs 1 e 3), o que significa que antes de o depoente começar a narrar o que sabe, o tribunal deverá aperceber-se da chamada razão de ciência, ficando ciente do modo como a testemunha adquiriu esse conhecimento.

Capacidade para Testemunhar
Qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha e só pode recusar-se nos casos previstos na lei (cfr. art.º 131º CPP).
Decorre do artigo 128º, nº 1, que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, assim se balizando o depoimento, evitando a conversa desnecessária e completamente fora do tema da prova.
O problema da credibilidade do depoimento encontra-se associado ao da veracidade, o que facilmente se compreende. Se a testemunha percepcionou efectivamente aquilo que refere, a declaração será verdadeira, ao menos subjectivamente, embora se não exclua um defeito de percepção ou um erro de interpretação, ou mesmo um esquecimento ou um equívoco, o que, por definição, exclui que a testemunha esteja a mentir.
Assim, a lei impõe um exame preliminar da testemunha: “a inquirição deve incidir, primeiramente, (…), sobre as suas relações de parentesco e de interesse com o arguido, o ofendido, o assistente, as partes civis e com outras testemunhas, bem como sobre quaisquer circunstâncias relevantes para avaliação da credibilidade do depoimento” (artigo 138º, n.º 3).
Para apreendermos a veracidade das declarações da testemunha servimo-nos de elementos tirados da experiência, pelo que esta fase preliminar da inquirição constitui um instrumento e um momento necessários para a verificação do dado histórico (a reputação, os precedentes, o carácter da testemunha, as suas relações com as partes e assim por diante). Para além da veracidade subjectiva do depoimento, a autoridade judiciária deverá verificar se, tendo percepcionado o facto, a testemunha não incorreu num equívoco ao interpretá-lo, e que dele conservou uma exacta recordação, tendo conseguido traduzi-lo fielmente por palavras, ainda que o controlo de alguns destes eventos psíquicos seja virtualmente impossível.

Objecto da inquirição
O objecto da inquirição retira-se do nº 1 do artigo 128º: a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova.
Mas como podemos certificar-nos que a testemunha expõe apenas aqueles factos, assegurando-nos que não se esqueceu, naquele momento que não deixa de ser de nervosismo, de expressar factos essenciais de que tinha conhecimento directo?
A melhor maneira de conseguir que a testemunha não se esqueça de nada de importante no seu depoimento será questioná-la sempre sobre os seguintes aspectos:
Quis? Quid? Ubi? Quibus Auxilius? Cur? Quomodo? Quando?
Estas expressões poderão ser traduzidas da seguinte forma:
Quem poderá ter cometido tal acto?
Qual a natureza deste acto?
Onde é que foi cometido?
Houve colaborações e cumplicidades?
Qual terá sido o móbil?
Como foi praticado o acto?
Em que momento foi praticado?

Deveres da testemunha
A qualidade de testemunha cabe, portanto, à pessoa que tenha conhecimento directo dos factos objecto de prova, não podendo a mesma recusar-se a depor. A excepção a essa qualidade abrange apenas os interditos por anomalia psíquica (artigo 131º, nº 1).
Contudo, já não será testemunha o arguido, ou seja: não pode ser testemunha quem for “parte” no processo.
O que acaba de se mencionar deverá conjugar-se com o disposto no nº 2 do artigo 132º: a testemunha não é obrigada a responder a perguntas quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal. Quando a testemunha se recusa a responder a uma pergunta que a pode incriminar, não pode o juiz obrigá-la a falar. Pretende-se evitar que a testemunha se veja constrangida a prestar depoimento falso, expondo-se à correspondente responsabilidade penal, desobrigando-a de responder quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal.
A testemunha é livre de responder, mas, então, deverá ter-se presente a norma do artigo 59º, nº 1 do CPP, que manda suspender imediatamente o acto e fazer a comunicação e a indicação aí referidas, se durante a inquirição surgir fundada suspeita de crime por ela cometido.

O artigo 132º dispõe sobre os deveres gerais da testemunha, que passam pelo dever de presença, pela prestação de juramento, quando ouvida por autoridade judiciária, pela obediência às indicações que legitimamente lhe forem dadas quanto à forma de prestar depoimento, bem como a responder com verdade.
A falta injustificada da testemunha é punida nos termos do artigo 116º, e a testemunha pode ser conduzida à presença da autoridade judiciária manu militari, sem prejuízo do disposto no art.º 117º do CPP.
A recusa injustificada de prestar juramento equivale à recusa de depor (artigo 360º, nº 2, do Código Penal).[2]
As perguntas à testemunha estendem-se aos aspectos referidos no artigo 131º, nº 2, para avaliar a credibilidade do depoimento: verificação da aptidão física ou mental de qualquer pessoa para prestar testemunho, quando isso for necessário para avaliar da sua credibilidade e puder ser feito por processos expeditos, sem retardar a marcha normal do processo.
O depoimento indirecto
Quanto aos factos, a testemunha pode ter deles um conhecimento directo ou indirecto. Tem conhecimento directo quando percepcionou pessoalmente o facto com algum dos seus cinco sentidos. Tem conhecimento indirecto (conhecimento de ouvir dizer) quando refere o que foi narrado por outrem, de viva voz, por escrito, ou por qualquer outro meio[3]. Quando a pessoa que procede à narração não se apercebeu pessoalmente do facto a provar, o depoimento, se for admitido, só poderá sê-lo como depoimento indirecto e nos limites que a lei lhe impõe.
Dispõe o artigo 129º sobre o depoimento indirecto, preceituando que o “ouvir dizer” tem de ser “a pessoas determinadas”, que o juiz pode chamar a depor.
Neste sentido, a prova mediata, carecida da percepção sensorial directa dos factos, só terá valor para identificar a pessoa que realmente tem deles conhecimento directo. Se o juiz não chamar essa pessoa, o depoimento produzido, na parte correspondente, não poderá servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas[4]. O juiz valora então essa parte do depoimento de acordo com a sua livre convicção. De qualquer modo, não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos (artigo 129º, nº 3).
Vale a mesma explicação para a não admissibilidade, como depoimento, da reprodução de vozes ou rumores públicos (artigo 130º, nº 1).
Mas a testemunha pode referir-se à sua conversa com outra pessoa como parte do seu depoimento, nomeadamente quando tal facto se repercute na prática do crime.
A reprodução de boatos é absolutamente proibida como meio de prova. Já a manifestação de meras convicções pessoais pode ser admitida nas condições postas no nº 2 do artigo 130º. [5]
Podemos verificar que, a utilização e valoração dos testemunhos de ouvir dizer acabaria por ser contrária aos princípios da imediação e de contra-interrogatório na fase de julgamento; e é incompatível com um processo de estrutura acusatória.

No Acórdão extraído no processo nº. 719/92, 1ª Secção, datado de 2/3/94, publicado em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal Constitucional, enquadrando a questão, na do testemunho do ouvir dizer relembra a proibição da inquirição dos órgãos de polícia criminal, e quaisquer outras pessoas, que tiverem participado na recolha da prova, art. 356º/7 do C. P. P., viaja pelo direito europeu, designadamente pelo direito anglo-saxónico onde o preceito teve origem, para considerar inconstitucional a interpretação do art. 129º/1 do C. P. P. que permita que os agentes de polícia criminal sejam admitidos a depor sobre conversas que tivessem tido com o arguido antes de este ser presente ao juiz de instrução criminal, isto tendo em conta o disposto nos arts. 356º/7 e 357º/1 do C.P.P., por tal interpretação ser contrária ao art. 32º/1 da Constituição da República Portuguesa[6].E ali se escreve: "O artigo 356º, nº. 7 [C. P. P.] proíbe que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida sejam inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo dessas declarações. Ora, se isto é assim quanto a declarações licitamente colhidas pelos órgãos de polícia criminal mas cuja leitura é proibida nos termos dos nºs. 1 a 6 do art. 356º e do nº. 1 do artigo 357º do mesmo Código, não faria sentido que, pela via do artigo 129º nº. 1, se tolerasse o que pelo artigo 356º, nº. 7, explicitamente se proibiu. Sendo, como é, insubsistente o argumento de que, no caso, não figuram no processo quaisquer declarações prestadas pela (co) arguida perante os agentes da Polícia Judiciária: tais declarações não figuram porque, apesar de terem sido obtidas, eram absolutamente proibidas”[7].
Comentando a regra do art. 129º, nº 1, CPP, Germano Marques da Silva considera que "[a] proibição do testemunho de ouvir dizer é, por outro lado, reforçada pela norma constante do art. 356º, nº 7: proibição de testemunho sobre o conteúdo de declarações recolhidas no inquérito ou na instrução e cuja leitura não seja permitida em audiência"[8]; mais à frente, o mesmo autor afirma que os "órgãos de polícia criminal podem testemunhar sobre todos os factos de que tenham conhecimento directo, só não podendo ser objecto do seu depoimento os conhecimentos que tiverem obtido através de depoimentos cuja leitura seja proibida ou que deveriam ser reduzidos a auto e não foram, sendo a leitura desse auto também proibida" - pág. 140.
Igualmente, Marques Ferreira sustenta que a ilegal admissão do testemunho indirecto no novo Código de Processo Penal acarreta a nulidade do mesmo, impedindo a sua valoração pelo tribunal, embora não aceite "a transmissão do vício às demais provas licitamente obtidas, porventura na mesma ocasião, só pelo facto de a avaliação destas em processo penal depender do livre convencimento do tribunal e este ser indivisível"[9].

O acórdão do TC nº 213/94 DR II série, de 23 de Agosto de 1994, concluiu pela não inconstitucionalidade da norma do nº 1, última parte, enquanto interpretada no sentido de admitir que possa servir como meio de prova o depoimento que resultar do que se ouviu dizer a pessoa determinada quando a inquirição desta pessoa não for possível por impossibilidade de ser encontrada — mesmo que seja um co-arguido e depoente um agente da polícia judiciária que com ela contactou quando, na situação de detida, aguardava o primeiro interrogatório judicial.
Por sua vez, o acórdão do TC nº 440/99 DR II série de 9 de Novembro de 1999 e BMJ 489, p. 5, concluiu que o artigo 129º, nº 1, (conjugado com o artigo 128º, nº 1), do CPP, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido.
Acresce que, também já se entendeu que: “nada impede que os órgãos de polícia criminal possam ser ouvidos sobre factos de que tomaram conhecimento, mormente em resultado de haverem tomado conta da ocorrência; podem também ser valoradas para efeitos de convicção do tribunal, as declarações logo prestadas na ocorrência pela vítima mortal”. Acórdão do STJ de 20 de Novembro de 2002 CJ 2002, tomo III, p. 232.
No mesmo sentido se conclui no Ac. RC de 2 de Fevereiro de 2005, in CJ 2005, tomo I, pág. 42: “Os depoimentos de testemunhas que ouviram o relato dos factos da boca do próprio ofendido, quase de seguida à ocorrência dos mesmos, podem ser valorados pelo tribunal, não constituindo prova proibida”[10].

Impedimentos e Recusas
Segundo os nºs 1 e 2 do artigo 133º estão impedidos de depor como testemunhas:
a) O arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade;
b) As pessoas que se tiverem constituído assistentes, a partir do momento da constituição;
c) As partes civis.
Em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo podem depor como testemunhas, se nisso expressamente consentirem. É uma matéria que se deverá conjugar com a (in)capacidade para testemunhar de que trata o artigo 131º, levando-se em conta que o impedimento do artigo 133º valerá apenas no processo em que se verifique.
Ao dever geral de testemunhar, também incluído no artigo 131º, nº 1, quanto ao conhecimento de factos objecto da prova, opõe o Código as excepções do artigo 134º. Podem recusar-se a depor como testemunhas:
a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao segundo grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido;
b) Quem tiver sido cônjuge do arguido, ou quem com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação.
A entidade competente para receber o depoimento adverte, sob pena de nulidade, as pessoas referidas no número anterior da faculdade que lhes assiste de recusarem o depoimento.
O Supremo, por acórdão de 17 de Janeiro de 1996 CJ ano IV, tomo I, p. 177, admitiu a possibilidade de os familiares poderem recusar-se a depor, com fundamento neste artigo 134º, mesmo em relação a outros arguidos de uma mesma infracção, mas é opinião recusada, com boas razões, por alguns sectores doutrinários. Parte-se do princípio que a testemunha se encontra numa situação de conflito, de forma que a lei antepõe interesses que derivam dos laços familiares a interesses da administração da justiça, fazendo-os prevalecer em todos os casos, sem necessidade da sua concreta comprovação ou demonstração. Ora, quando os factos objecto do depoimento “são clara e objectivamente insusceptíveis de responsabilizar o arguido familiar, por lhe serem totalmente alheios, ou, mais precisamente, por se não registar um facto homogéneo em sentido processual, não existe fundamento para a recusa.
Comentando este acórdão, escreve Medina de Seiça “o direito de recusa justifica-se em nome dos laços familiares, que, como justamente se assinala podem ficar de igual modo prejudicados quando o familiar tem de declarar num processo contra um arguido não familiar mas em que os factores sobre que incidirá o depoimento constituem o objecto do processo do arguido seu familiar (…) Já não porém quando os factos objecto do depoimento são totalmente autónomos em relação aos do arguido familiar. Neste caso não existe fundamento para a recusa: a testemunha deve declarar e contribuir, assim, para a descoberta da verdade”[11]
A recusa tem de ser declarada expressamente, sem que se exija uma qualquer justificação que não seja a relação existente. Não sendo usada a faculdade, não obstante a advertência, quem depuser como testemunha está sujeito ao dever de verdade e não pode recusar-se a depor, por não subsistir a ratio da norma em questão. A partir do momento em que os parentes e afins de um arguido se não recusam a depor passam a funcionar como qualquer testemunha, portanto, sem quaisquer reservas, excepções ou limitações, tendo que responder com verdade à matéria que lhes for perguntada.
De qualquer forma, no veredicto final, não pode o juiz valorar a recusa de parente ou afim em desfavor do arguido.
Tenha-se igualmente presente que o nº 6 do artigo 356º proíbe a leitura de depoimento prestado anteriormente por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.

A Relevância do Segredo
Segredo profissional, segredo de funcionários, segredo de Estado
A protecção jurídico-penal do segredo pode servir interesses variados. Para além da “violação de segredo” (artigo 195º) e do “aproveitamento indevido de segredo” (artigo 196º), que se justificam pela quebra duma relação de confiança, o Código Penal prevê a “violação de segredo de Estado” (artigo 316º), a “violação do segredo de escrutínio” (artigo 342º), a “violação do segredo de justiça” (artigo 371º) e a “violação de segredo” no âmbito dos crimes cometidos no exercício de funções públicas (artigos 383º e 384º), em que estão em causa interesses supra-individuais.
O artigo 33º, nº 1, do Código de Justiça Militar pune a violação de segredo de Estado por aquele que, pondo em perigo interesses militares do Estado Português relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna e externa, transmitir, tornar público ou revelar a pessoa não autorizada facto ou documento, plano ou objecto, que devam, em nome daqueles interesses, manter-se secretos.
A disciplina jurídica do segredo bancário tem também pontos de contacto com esta matéria. As entidades financeiras estão sujeitas ao dever de sigilo, em especial no que se refere aos “nomes dos clientes, contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias”, de harmonia com os artigos 78º e 195º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro. Segundo o artigo 84º deste mesmo diploma, a violação do dever de segredo é punível nos termos do Código Penal.
O segredo bancário não é, porém, um segredo absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
De acordo com o artigo 137º, nº 1, as testemunhas não podem ser inquiridas sobre factos que constituam segredo de Estado, o qual abrange os factos cuja revelação, ainda que não constitua crime, possa causar dano à segurança, interna ou externa, do Estado Português ou à defesa da ordem constitucional. Se a testemunha invocar segredo de Estado, deve este ser confirmado, no prazo de trinta dias, por intermédio do Ministro da Justiça. Decorrido este prazo sem a confirmação ter sido obtida, o testemunho deve ser prestado.
Quanto ao segredo profissional, no artigo 135º individualizam-se cinco categorias profissionais: os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito, acrescentando-se “as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo”.
O segredo profissional está previsto em alguns diplomas legais como o Decreto Regulamentar nº 27/95, de 31 de Outubro, que submete os funcionários em serviço na Polícia Judiciária que tomem conhecimento de dados pessoais registados nos ficheiros informáticos à obrigação de sigilo profissional, nos termos do artigo 32º da Lei nº 10/91, de 19 de Abril, relativa à protecção de dados pessoais face à informática; o artigo 14º do Decreto-Lei nº 249/98, de 11 de Agosto, impõe aos funcionários da Inspecção-Geral de Finanças rigoroso sigilo sobre todos os assuntos de que tomem conhecimento no exercício ou por causa do exercício das suas funções; o dever de sigilo está igualmente previsto no artigo 22º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (Lei nº 50/2005, de 30 de Agosto); o artigo 11º da Lei nº 1/99 de 13 de Janeiro, que aprova o Estatuto do Jornalista, prevê o sigilo profissional dos jornalistas, que não são obrigados a revelar as suas fontes de informação, não sendo o seu silêncio passível de qualquer sanção, directa ou indirecta; “sem prejuízo”, naturalmente, “do disposto na lei processual penal” .
Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. Doutro modo, o tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
O disposto no nº 3 não se aplica ao segredo religioso.
Nos casos previstos nos n.°s 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada, ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
No artigo 136º prevê-se o segredo de funcionários, que não podem ser inquiridos sobre factos que constituam segredo e de que tiverem tido conhecimento no exercício das suas funções.
Conforme refere o Prof. Manuel da Costa Andrade ([12]), “tanto o dever de sigilo que a lei substantiva prescreve, como o direito ao sigilo que a lei processual reconhece, visam salvaguardar simultaneamente bens jurídicos de duas ordens distintas. A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra individual e institucional sobre que deve assentar o exercício de certas profissões”.

Regras da inquirição
Sob a epígrafe “regras da inquirição”, o artigo 138º dispõe que o depoimento é um acto pessoal. Às testemunhas não devem ser feitas perguntas sugestivas ou impertinentes, nem quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
A inquirição, como já mencionámos, deve incidir, primeiramente, sobre os elementos necessários à identificação da testemunha, sobre as suas relações de parentesco e de interesse com o arguido, o ofendido, o assistente, as partes civis e com outras testemunhas, bem como sobre quaisquer circunstâncias relevantes para avaliação da credibilidade do depoimento.
Seguidamente, se for obrigada a juramento, deve prestá-lo, após o que depõe nos termos e dentro dos limites legais.
Quando for conveniente, podem ser mostradas às testemunhas quaisquer peças do processo, documentos que a ele respeitem, instrumentos com que o crime foi cometido ou quaisquer outros objectos apreendidos. Pode até acontecer que, sem prejuízo da oralidade e da espontaneidade das declarações feitas, a entidade que presidir ao acto autorize que o declarante se socorra de apontamentos escritos como adjuvantes da memória (artigo 96º, nºs 2 e 3).
Se a testemunha apresentar algum objecto ou documento que puder servir a prova, faz-se menção da sua apresentação e junta-se ao processo ou guarda-se devidamente.
No julgamento compete ao presidente, dentro dos seus poderes de disciplina e direcção, garantir o contraditório e impedir a formulação de perguntas legalmente inadmissíveis, bem como dirigir e moderar a discussão, proibindo, em especial, todos os expedientes manifestamente impertinentes ou dilatórios (artigo 323º, alíneas f) e g).

Especialidades
A) Menor de 16 anos
Quando se tratar de uma testemunha que seja menor de 16 anos, a inquirição em audiência é levada a cabo apenas pelo Juiz presidente, com a possibilidade de o Ministério Público, o assistente ou o arguido formularem perguntas adicionais (artigo 349º). A modalidade da inquirição é certamente inspirada na exigência de tutelar a personalidade do menor e a serenidade do mesmo.
Por sua vez, a lei nº93/99 de 14 de Julho, complementada pelo DL nº 190/2003, de 22 de Agosto, estabelece que a autoridade judiciária pode, se considerar necessário, requerer a indicação de um técnico social para o acompanhamento do menor, bem como apoio psicológico para o mesmo durante a realização dos actos processuais.
Determina o art.º 131º, nº 3, que, tratando-se de depoimento em crime sexual, pode ter lugar perícia sobre a personalidade.

-Mas e no que respeita a outros crimes, não poderá ocorrer esta mesma perícia?
-O art.º 349º prevê a possibilidade da perícia à intelectualidade do menor em fase de julgamento. Será que se pode conceber a realização da mesma em fase anterior? Afinal, quando um menor presta o seu depoimento, seja em que fase processual for, está sempre numa situação de necessidade de discriminação positiva, pelo que deverá ser-lhe assegurada a tutela da sua não influência intelectual.

B) Deputados
A Constituição da República Portuguesa faz depender a possibilidade de os deputados poderem ser testemunhas da disciplina que a lei ordinária estabelecer (art.º 154º nº3). Esta lei a que a CRP se refere é a Lei 7/93 de 1 de Março (Estatuto dos Deputados), onde se prevê que para os deputados serem ouvidos como testemunhas tem de ser concedida autorização pela Assembleia da República.
O requerimento deve ser efectuado pelo Juiz dirigindo-se ao Presidente da Assembleia da República.
No inquérito, sendo o titular desta fase processual o MP, quem deverá fazer o requerimento? O JIC ou o MP?

C) Órgãos de Polícia Criminal[13]
Os OPC, assim como as restantes testemunhas, estão sujeitos aos deveres anteriormente enunciados. Todavia, é importante debruçarmo-nos sobre uma particularidade do seu depoimento, nomeadamente sobre a credibilidade do mesmo.
Será que o seu depoimento possui uma credibilidade acrescida?
É certo que os seus conhecimentos, a sua percepção do que é importante para o processo, a sua maior experiência, fazem dele uma testemunha qualificada, mas até que ponto?

Imunidades, prerrogativas e medidas especiais de protecção
O artigo 139.° dispõe sobre imunidades, prerrogativas e medidas especiais de protecção. Assim, têm aplicação em processo penal todas as imunidades e prerrogativas estabelecidas na lei quanto ao dever de testemunhar e ao modo e local de prestação dos depoimentos.
As principais imunidades e prerrogativas encontram-se contempladas nos artigos 624º, 625º e 626º do CPC.
A Lei nº 93/99, de 14 de Julho (regime jurídico de protecção de testemunhas em processo penal, regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 190/2003, de 22 de Agosto) ([14]) regula a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo.
A prestação de declarações ou depoimento que deva ter lugar em acto processual público ou sujeito a contraditório pode decorrer com ocultação da imagem ou com distorção da voz, ou de ambas, de modo a evitar-se o reconhecimento da testemunha. Prevê-se também que esses depoimentos e declarações sejam prestados por teleconferência (art.º 318º CPP)[15].

Questões:
1) Pode o programa de protecção de testemunhas ser aplicado a um co-arguido?
2) Pode uma testemunha ser acompanhada, em sede de inquérito, por um advogado aquando da sua inquirição?
3) Podem ser consideradas, aquando do depoimento do agente de autoridade, em sede de julgamento, as conversas informais mantidas com o arguido?
[1] Facto é o acontecimento, evento ou situação que pertence ao passado ou ao presente e é susceptível de prova. Podem ser factos interiores (motivos, objectivos, características do carácter) se estiverem relacionados com determinados eventos externos. O facto distingue-se do juízo de valor, que se analisa numa afirmação contendo uma apreciação ou opinião.
[2] A recusa injustificada de prestação de depoimento é punida nos termos do artigo 360º, nº 2, do Código Penal (cf. o artigo 91º, nº 4).
O depoimento falso é punido nos termos do artigo 360º, nº 1, do Código Penal.

[3] “O testemunho de ouvi dizer não se confunde com o depoimento indirecto. Quando uma testemunha refere o que ouviu dizer ao arguido, que está presente, não se pode qualificar tal como testemunho de ouvi dizer só porque o arguido optou pelo direito ao silêncio”, in Ac. RC de 11 de Janeiro de 2006, www.dgsi.pt
[4] “O artigo 129.º do Código de Processo Penal autoriza, no último segmento do seu n.º 1, a utilização e valoração, como meio de prova, do depoimento indirecto, isto é, baseado no que se ouviu dizer a pessoas determinadas, quando não for possível interrogar as pessoas indicadas, por impossibilidade de as encontrar. É o caso do depoimento da testemunha, agente da autoridade, na parte em que revela ao tribunal o que lhe foi dito pelo queixoso, cidadão japonês, no acto em que apresentou a denúncia por crime de roubo, relativamente ao qual, indicado como testemunha, se tentou, por carta expedida para a sua residência no Japão, a notificação, frustrada, tendo a carta sido devolvida” – in Ac. STJ de 10 de Novembro de 2005, www.dgsi.pt;

[5] É boato a notícia que corre, sem fundamento ou origem verificável; é um facto falso, incorrectamente descrito ou de validade duvidosa no que respeita ao seu conteúdo; no respeitante à via de comunicação é, por um lado, imprópria ou indigna de utilização, por outro, denuncia a informação escondida.
[6] “Os agentes da polícia criminal estão proibidos de serem inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo de declarações que tenham recebido e cuja leitura não seja permitida e não de o serem sobre o relato de conversas informais que tenham tido com os arguidos. Salvo se se provar que o agente investigador escolheu deliberadamente esse meio de conversas informais para evitar a proibição da leitura das declarações do arguido, em audiência.” – in Ac. STJ de 29 de Março de 1995, in www.dgsi.pt;

[7] ”As conversas informais e "esclarecimentos" não podem ser valoradas em sede probatória, sejam quais forem as formas que assumam desde que não tenham assumido os procedimentos de recolha de prova admitidos por lei e por ela sancionados, designadamente os do artigo 275º do CPPenal”, in Ac. RC de 18 de Fevereiro de 2004, in www.dgsi.pt;
[8] In, Curso de Processo Penal, II, Lisboa, 1993, pág. 133
[9] Meios de Prova, in Jornadas de Direito Processual Penal - O novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, pág. 236
[10] “O depoimento de uma testemunha que relata o que ouviu da boca do ofendido sobre os factos em discussão, quase logo a seguir à sua ocorrência, pode ser valorada, não constituindo prova proibida” in Ac. RP 29 de Março de 2006 www.dgsi.pt. No mesmo sentido Ac. da R.C. de 2/7/2005, CJ, Ano XXX, Tomo I, pág. 42.

[11] In Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6, fascículo 3, pág. 496.
[12] Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 53.
[13] Ver circular 4/87 quanto à indicação de agentes de OPC como testemunhas e sua convocação para inquirição.
[14] O Decreto-Lei nº 190/2003, de 22 de Agosto, pretende concretizar as regras de confidencialidade essenciais à efectiva protecção de testemunhas que requeiram a reserva do conhecimento da identidade, o desenvolvimento dos meios de efectivar as diferentes medidas pontuais de segurança previstas na Lei nº 93/99, de 14 de Julho, e desenvolver as regras de funcionamento da comissão de programas especiais de segurança.
[15] “...tendo sido judicialmente decidido proceder-se à inquirição, em sede de julgamento, do agente encoberto, a requerida audição do mesmo por teleconferência só se justificaria – até porque não se pediu que tivesse lugar com distorção de imagem e voz – se se verificasse encontrarem-se reunidos os requisitos a que se reportam o nº 1 do artº 5º (ponderosas razões de protecção da testemunha) e o nº 2 do artº 6º da mencionada Lei nº 93/99 (indicação pelo requerente das circunstâncias concretas que justifiquem o recurso à teleconferência)...”; in Ac. RL de 28 de Setembro de 2004, www.dgsi.pt.